Durante o Congresso Internacional da AVACI 2023, realizado entre os dias 3 e 4 de maio na cidade brasileira do Rio de Janeiro, foi discutida a incidência da Inteligência Artificial (IA) no trabalho de roteiristas e diretores.
Participaram da palestra o diretor e roteirista argentino Marcelo Piñeyro (DAC), o diretor croata Nikica Zdunic, membro do Conselho de Administração da DHFR, a roteirista brasileira Sylvia Palma (GEDAR), o roteirista colombiano Carlos Gaviria (REDES), os advogados especializados em direito autoral Luis Mangiavillano (DAC) e Germán Gutiérrez (ARGENTORES), o esloveno Gregor Stibernik , gerente geral da AIPA e o diretor e roteirista panamenho Luis Romero (EDAP).
Os palestrantes abordaram as novas tecnologias, com foco na Inteligência Artificial (IA) na indústria audiovisual e como seu uso está mudando os modos de produção.
A utilização da IA é um tema de debate em todo o mundo e a indústria audiovisual não está isenta dessa discussão, pois seu uso abrange desde a redação dos roteiros e o casting até os efeitos especiais e a distribuição.
Sem dúvida, a IA está transformando a maneira como os filmes são feitos e assistidos. Por um lado, gera benefícios, mas também existem potenciais desvantagens que precisam ser consideradas.
“Vou falar sobre as preocupações que isso gera. A primeira coisa que pensamos são imagens apocalípticas. Na atual greve dos roteiristas de Hollywood, uma das queixas diz respeito ao uso de IA pelos produtores. Esse é um apocalipse mais provável. O uso positivo da IA no audiovisual é indiscutível. Criativamente, a IA pode nos substituir?", foram as palavras com as quais Marcelo Piñeyro abriu a discussão.
Como exercício, Piñeyro deu o exemplo do filme Ano passado em Marienbad, de Alan Resnais e imaginou “passar esse filme para uma IA como se a história fosse nossa e que lhe fosse solicitado à IA que o montasse em estruturas, que o divida em atos e cenas. Esse filme ia para outro lugar como modelo de construção. A IA nos levava a uma narrativa mais convencional. Sem dúvida, a IA hoje é gerida com a carga de informação que tem”.
Marcelo Piñeyro - Diretor e Roteirista Ano passado em Marienbad
Por sua vez, Nika Zdunic sustentou que "alguns empregos serão perdidos, mas acho que são os técnicos e não os criativos". A diretora croata disse que começou a usar Midjourney - uma IA que cria imagens a partir de texto ou outras imagens - para fazer um storyboard e "não gostei, mas foi impressionante". E acrescentou que às vezes conversa com a IA enquanto escreve roteiros para perguntar o que opina: “isso me ajuda a perceber o que é esperado e tento evitá-lo”.
Imagem gerada com Midjourney Nikica Zdunic - Diretora croata
Para Sylvia Palma, a IA “exige novos meios de pensar. Estou otimista porque antes escrevíamos com uma pena, depois com máquinas, depois com computadores, e nunca esquecemos o fato da criação. Quanto mais acesso tivermos ao conhecimento e com a tecnologia nos ajudando a criar, começaremos a enfrentar novos processos que não havíamos pensado antes.”
Sylvia Palma - Roteirista brasileira
Quais são os limites?
Segundo informações publicadas nos sites Variety e The Hollywood Reporter, “as principais empresas de inteligência artificial (OpenAI , Google, Meta, Amazon, Microsoft, Inflection e Anthropic) aceitaram voluntariamente medidas de segurança para gerenciar os riscos representados pela tecnologia emergente em uma tentativa da Casa Branca de fazer com que o setor se autorregulasse na ausência de uma legislação que estabeleça limites para o desenvolvimento de novas ferramentas”.
Sabe-se que atualmente existem muitas empresas de roteiros trabalhando no carregamento de dados para que as IA tenham mais informações na hora de se alimentar para criar. Está claro até que ponto ceder ou até que ponto permitir sua interferência?
Marcelo Piñeyro -como a própria indústria de Hollywood- questionou-se durante o Congresso sobre “qual é o limite da ferramenta e até que ponto lhe dá autoridade para desenvolver a narrativa? A narrativa me interessa porque, quando falamos em criar mundos digitais, nós estamos falando de coisas objetificáveis. Quando eu tinha 18 anos, esse presente era impossível em termos de possibilidade de ver e fazer cinema”.
Outro dos assuntos presentes no debate durante o último Congresso da AVACI foi até que ponto produções feitas com IA podem ou devem ser aceitas e que podem ter Humphrey Bogart e Michelle Pfeiffer como protagonistas.
O diretor panamenho Luis Romero comentou que “a IA existe há muitos anos. Desde que o computador nasceu, a inteligência artificial existe. Para mim, a essência não está no uso da IA contra nós. O Final Draft é inteligência artificial: você escreve o roteiro, define quantas vezes você usou o personagem e seu percurso. Esses programas foram criados para a guerra e para gerar dinheiro e poder para o sistema dominante. O que fazemos com a inteligência artificial tem que ser uma questão humana.”
Luis Romero - Diretor e Roteirista panamenho Imagem gerada com Midjourney
A esse respeito, Piñeyro afirmou que ele “adoraria fazer um filme com o Marlon Brando dos anos 50. O problema é se ele substitui nós criadores. Eu nunca negaria filmes de animação, mesmo que não o faça. A IA fez a animação crescer de forma incrível e continua gerando trabalhos extraordinários. Mas ainda não temos clareza sobre o potencial da IA como ferramenta. A questão é que eu acho que, neste mundo de economias poderosas, a ferramenta pode querer ser usada para nos substituir. Não tenho dúvidas de que há quem esteja pensando em nos substituir pela IA.
Direitos autorais em jogo
A partir do exemplo de Bogart, Pfeiffer e Brando, apareceu a pergunta se essas produções não constituiriam - ou não beirariam - a falsificação, infringindo os direitos autorais. Todo um dilema ético e moral, que levou a uma questão lançada pelo diretor e roteirista esloveno Klemen Dvornik (AIPA): "Como usar IA para evitar o abuso de direitos autorais?".
E foi o diretor executivo da DAC, Luis Mangiavillano, quem ensaiou uma primeira resposta a este respeito, afirmando que “estamos perante um problema. Uma decisão recente do escritório de copyright dos Estados Unidos negou o copyright de uma história em quadrinhos criada por uma IA. Isso significa que a IA cria e essa criação não é protegida por direitos autorais. O direito autoral nasceu para proteger as pessoas. Se as máquinas começam a criar e as instituições apontam que as criações não têm dono porque não há humano por trás desse trabalho, estamos em problemas. A IA desenvolve algoritmos, mas prospera com direitos autorais. É uma situação perigosa, os governos estão negando os direitos autorais das IAs.”
Imagem gerada com Midjourney Luis Mangiavillano Advogado especializado em Direitos Autorais
O escritor Philip K. Dick, ao falar do assunto, perguntou-se "Se os Androides sonham com ovelhas elétricas" e o diretor Steven Spielberg, no já distante 2001, questionou-se em seu filme IA se essas inteligências teriam sentimentos como os humanos.
O roteirista colombiano Carlos Gaviria (REDES) lembrou que “um psiquiatra escreveu O homem que confundiu sua esposa com um chapéu, e ali ele conta sobre alguém que perdeu a inteligência emocional, mas não a racional. Isso é o que é assustador. O que funciona é a emoção que se coloca nas coisas. A IA acaba sendo como um falsificador de pinturas: você pode aprender a fazer uma pintura como Cézanne mas nunca vai ter a alma emocional de Cézanne”.
Carlos Gaviria - Roteirista colombiano Imagem gerada com Midjourney
Em contraste, o esloveno Gregor Stibernik disse: “Não concordo que a IA não seja capaz de sentimentos. Um chatbot pode escrever uma piada. Hoje, uma IA pode substituir o roteirista médio.”
Imagem gerada com Midjourney Gregor Stibernik - Gerente geral de AIPA
O advogado Germán Gutiérrez sustentou que “uma obra criada por uma IA não reflete a personalidade de ninguém porque não há um ser humano por trás dela. As obras utilizadas como treinamento vão merecer proteção e vamos lutar para que esses direitos originários sejam respeitados apesar da adaptação da IA.”.
Germán Gutiérrez - Advogado Imagem gerada com Midjourney
A maioria dos participantes da conversa-debate sobre a incidência da IA no trabalho de roteiristas e diretores concordaram que a necessidade de regulamentação é uma questão central, ainda que como não está nas mãos deles, mas das empresas que os administram, é no mínimo preocupante.
IA espelhada por Hollywood
Na última edição de Missão Impossível – Acerto de Contas Parte 1 - Tom Cruise e sua equipe enfrentam uma forma todo-poderosa de inteligência artificial conhecida como a Entidade, que tem a capacidade de manipular pessoas, armas e vários sistemas de defesa. No filme eles tentam evitar que a Entidade caia em mãos erradas, indo atrás de vários poderosos que querem adquirir e controlar essa perigosa tecnologia.
O filme chegou aos cinemas em um momento de grande preocupação com a ameaça real representada pela IA, mesmo em Hollywood, onde as restrições sobre quais tecnologias podem ou não ser usadas no cinema e na televisão estão no centro das disputas trabalhistas em andamento entre os escritores e atores em greve versus os estúdios e plataformas.
A atriz sueca e protagonista de "Missão: Impossível", Rebecca Ferguson, disse ao The Hollywood Reporter, referindo-se à greve dos escritores e ao que era então uma possível greve dos atores. "As pessoas têm medo. Vivemos em um mundo onde a IA vai se fundir com o nosso mundo e temos que ver onde nos encaixamos e como ela funciona e por que ela não apenas passa por cima de nossos empregos, mas também de nossa vida cotidiana”.
Rebecca Ferguson - Wikipedia
Entre as conclusões, Marcelo Piñeyro destacou um aspecto em que a IA pode ser útil para a indústria audiovisual. “O central deve ser que a obra circule, que seja exposta. Como era na época em que o cinema fazia parte do debate e marcava a pauta, ele intervinha no mundo. Acredito que a IA pode nos ajudar nisso para que nosso trabalho não pare de circular, de ser diverso. Que o olhar dos criadores seja o que determina a existência das obras. Acho que esses são os nossos desafios."
O futuro é pura incerteza e a humanidade assiste aos primeiros passos da IA no universo da criatividade, dentro do mundo da arte. “Se a IA se desenvolve a ponto de gerar empolgação, ela se torna uma questão ética essencial. Acho que estamos tão no começo que é muito difícil ver onde isso pode dar”, concluiu Piñeyro.
Comments